Migas de Espargos

Migas de Espargos, um manjar de deuses para pobres mortais. Serve-se na exangue Planície Transtagana. Prove, antes que acabe.

2009/03/19

Aniversários

MANUEL RIBEIRO DE PAVIA - passa hoje o 102.º aniversário do seu nascimento. Este brilhante pintor alentejano, natural de Pavia (onde existe uma Casa-Museu dedicada à sua obra e à sua memória) faleceu em 1957 (ironicamente, no dia do 50.º aniversário). Aqui fica a capa da publicação sobre a sua obra, editada em 2007, por alturas do centenário do seu nascimento.




E para provar que a astrologia é uma treta, no dia de hoje também faz anos a Ministra Maria de Lurdes Rodrigues. Se calhar é aquela "cena" dos ascendentes na casa de Saturno, ou da fase da lua.
"No mesmo dia do mês
por um desígnio caturra
um brilhante português
e uma "educadora"... casmurra(?)"

2007/11/04

Aqui jaz um poeta dum cabrão!

O grande Manuel da Fonseca terá confessado, numa roda de amigos, algum tempo antes de morrer que gostaria de ter, no epitáfio da sua campa, a inscrição que dá o título a este "post": "Aqui jaz um poeta dum cabrão!" Afiança um admirador (não presente) que o que ele disse mesmo foi: "Aqui jaz um poeta dum real cabrão!"
Com "real" ou sem "real", aqui fica este poema:
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Romance do Terceiro Oficial de Finanças
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Ah! as coisas incríveis que eu te contava
assim misturadas com luas e estrelas
e a voz vagarosa como o andar da noite!

As coisas incríveis que eu te contava
e me deixavam hirto de surpresa
na solidão da vila quieta!...
Que eu vinha alta noite
como quem vem de longe
e sabe os segredos dos grandes silêncios
— os meus braços no jeito de pedir
e os meus olhos pedindo
o corpo que tu mal debruçavas da varanda!...

(As coisas incríveis eu só as contava
depois de as ouvir do teu corpo, da noite
e da estrela, por cima dos teus cabelos.
Aquela estrela que parecia de propósito para enfeitar os teus cabelos
quando eu ia namorar-te...)

Mas tudo isso, que era tudo para nós,
não era nada na vida!...Da vida
é isto que a vida faz.
Ah! sim, isto que a vida faz!
— isto de tu seres a esposa séria e triste
de um terceiro oficial de finanças da Câmara Municipal!...
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Não é mesmo um poeta dum raio?

2007/10/30

Educação terapêutica

Os Portugueses são, na generalidade, o retrato (não completamente fiel, por menos culto) do impagável Pangloss, personagem do "Cândido", de Voltaire: não vivemos num mundo perfeito mas vamos vivendo no melhor dos mundos possíveis, não vale a pena lutar para mudar o que não se pode mudar, tudo é harmónico neste fado, tudo tem de ser como é: a rosa precisa do olhar que extasia; a corça precisa do seu predador; o povo precisa dos seus governantes. Se bem que haja uma diferença substancial entre ser governado em Portugal ou na Finlândia.

Esta espécie de fatalismo determinista tem sido o principal obstáculo ao desenvolvimento do País e é também responsável pelo carácter submisso e dócil deste povo plantado aqui nos confins do Ocaso.

Isto aplica-se a (praticamente) todos e as famílias dos deficientes não fogem à regra. Trinta e tantos anos de Democracia não despertaram ainda a (mais do que saudável) intransigência cívica. A intransigência pode então ser saudável? Quando se trata de direitos e deveres, decididamente, SIM! Só a falta dessa clarividência explica (em mais de três décadas) a aceitação de um sistema que ignorou, olímpica e sistematicamente, a educação terapêutica, em contexto de integração. Os movimentos de Pais que, consistentemente, criaram uma rede nacional de CERCI´s, APPACDM´s e umas quantas IPSS´s provam que os portugueses não esperam nada dos seus governantes, nesta área específica.

Era para esperar? Claro que sim. Com tanto (ou maior) empenho quanto o usado nas outras áreas educativas. Não há maiores ou menores esforços: todos nasceram (nascemos) aqui.

Em teoria, na organização do sistema, existe espaço para a integração. Na prática, o funcionamento, mais do que ineficaz, é inábil, permanece bloqueado por resistências várias e o défice de recursos não resiste a um olhar, ligeiro que seja. Trata-se, em suma, de um regime hipócrita: tem forma mas não tem substância; é um esquema, um esboço imperceptível; permanece mas não acontece. Se fosse uma empresa, já teria falido: por má gestão, por fraca produção, por não satisfazer a (volumosa) carteira de clientes.

Mas estamos em Portugal. Por que haveria de funcionar bem esta área específica da educação? Quando falham a justiça, a saúde, as empresas, os governos, porque haveria de funcionar bem a educação? Ou melhor, porque haveria de funcionar bem tudo o resto quando a educação (o sector estratégico por excelência) tropeça nas próprias contradições.

Este raciocínio, ainda que inscrito num quadro difícil de desmontar, enferma de uma lógica perigosa que pode levar as pessoas a desistir de lutar, a julgarem-se no meio de uma batalha perdida.

E não pode ser. Se não podemos fugir aos deveres, também não queremos abdicar dos direitos. Lutemos por eles. Exijamos ao Estado nada menos que tudo. É o mínimo que podemos fazer face à máquina de extorquir as parcas poupanças dos cidadãos em que ele (Estado) se tranformou. No final, pode ser que possamos reaver uma pequena parte do que nos levaram e do que sistematicamente nos é negado.

Podemos contar vantagens do sistema de integração terapêutica? Só podemos. A integração é a resposta natural à problemática da deficiência. É um sistema exigente que consome recursos materiais e implica empenhamento dos recursos humanos dedicados. E vontade política.

Desde quando a exigência é factor mais impeditivo que estimulante? Em Portugal (parece que) desde sempre. A viragem é possível. Exigem-no os 10 por cento de portugueses afectados por um qualquer tipo de deficiência. E mais as suas famílias.

2007/06/12

Reflexões

Todo o autocarro tende, por uma vez, a ser pontual. Como se, animado por sopro de cognisciência, pudesse perceber que todo o humano tende, por uma vez, a chegar atrasado.

Uma vez por ano, descobria um lugar de estacionamento no centro da cidade. Uma vez por ano, esquecia as moedas para pôr no parquímetro. Desconhecia por que obscura razão as datas sempre coincidiam.

A vida sempre o presenteara com um punhado de boas soluções por cada má escolha. Estranhava a invencível inclinação que o levava a optar sempre mal.

2006/03/04

A Parábola da Batata

Uma praia escondida, algures no litoral. Acesso difícil, alcantilado mas, depois, um pequeno naco de paraíso, com a nota, inverosímil, de um pequeno hortejo, entre a última rocha e a areia. Nele, um velho pescador semeia e colhe, regularmente, viçoso e diverso complemento do pescado, base do seu sustento. Rosto rugoso, tisnado por muitos sóis e mais ventos, abre um rego, deixa passar o fio de água que escorre do penhasco, e logo o veda. Depois, repete tudo, na leira seguinte.
O primeiro veraneante do dia, são poucos os que arriscam a descida, cumprimenta e pára. Corre o hortejo com o olhar. Agrião, espinafre, couve, nabo e nabiça, até pepino e tomate. Batata, não. Estranhando a falta do fiel tubérculo, o homem faz eco da sua estranheza, inquirindo o pescador.
Amigo - levanta-se o pescador, afagando o moído rim, enquanto se apoia na sachola - as batatas, semeio-as, ali mais abaixo, no extremo do quinxoso, junto ao mar. Na enchente, a água entra na leira e fecunda a terra e a batata.
Gargalhando, agradado pela intimidade que a graçola inspira, o homem aproxima-se, apoia a mão no ombro do pescador e sugere, entre risadas: "companheiro, temos o problema do País resolvido, com tantas léguas de costa, basta semear batatas. Adeus dificuldades, adeus crise"!
Fixando, penetrante, desapontado, sério, os olhos do interlocutor, o pescador remata, certeiro, "homem, não tem solução essa crise, é mais fácil o mar criar batatas!"

2006/02/16

Questão de vida ou de morte no Sahara ou num qualquer hospital português!

Hassan e Al-Hassad repartiam um pequeno oásis, no Sahara, a uma distância de 10 litros de água da cidade mais próxima, palmilhando dunas sobre os velhos camelos. Cada um possuía uma tosco abrigo de adobe e uns quantos recursos alimentares, dois poços de água incluídos. Al-Hassad detinha ainda um recurso suplementar: uma carabina e cartuxos.

A precaridade dos recursos tornou-os austeros, um tanto amargos, desconfiados e parcos nas palavras. Olhavam-se de soslaio e cumprimentava-se com grunhidos.

Um dia, inesperadamente, o poço de Hassan secou. Percebendo a perturbação do vizinho, Al-Hassad carregou a carabina e sentou-se junto ao abrigo, de guarda ao recurso vital, a vinte metros do poço.

Um dilema fundamental devastava a mente de Hassan: ou tentava chegar à cidade, com o litro de água que lhe restava na ânfora; ou embarcava na aventura de roubar água ao vizinho.
Hassan sabia que precisava de 10 litros de água para se aventurar dunas afora. Tendo apenas um, as probabilidades de sobreviver eram reduzidas: uns miseráveis dez por cento.

Contudo, se esperasse pela noite, (e se fosse suficientemente hábil e silencioso), deslocando-se ao longo da fileira de aluendros que bordejavam o abrigo do vizinho, quando este, vencido pelo cansaço, adormecesse, talvez... quem sabe: à mente calculista (e sôfrega, e febril) de Hassan assomavam uns avantajados 90 por cento de êxito.

A decisão estava tomada.

Quando, altas horas, e pela vigésima vez, a cabeça de Al-Hassad adornou e não voltou do ombro, o sequioso crente, rastejou, sorrateiro, encheu (silenciosamente) a ânfora, afastou-se, aparelhou o camelo e partiu. O vizinho acordou, sobressaltado, com o roçagar do animal nos arbustos, correu, às cegas, na direcção do ruído e disparou dois tiros. A gargalhada de Hassan, uns bons trezentos metros adiante, fez-lhe perceber que errou.

O que tem esta história a ver com os hospitais portugueses?É simples: Se você entrar num hospital nacional para uma intervenção cirúrgica, tem muitas possibilidades (cerca de 90 por cento) de não apanhar uma infecção bacteriológica fatal. Os outros 10 por cento são um tiro mais certeiro de Al-Hassad.

2005/11/30

Fernando Pessoa

Faz hoje 70 anos que morreu Fernando Pessoa.

Mar Portuguez
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Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
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Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.