Migas de Espargos

Migas de Espargos, um manjar de deuses para pobres mortais. Serve-se na exangue Planície Transtagana. Prove, antes que acabe.

2005/11/30

Fernando Pessoa

Faz hoje 70 anos que morreu Fernando Pessoa.

Mar Portuguez
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Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
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Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

2005/11/16

O pão de Cicioso

D. João II passava longos períodos em Évora. Ocorreram, nesta cidade, alguns episódios ligados ao seu reinado. O que vou contar, prende-se com a falta de pão, na cidade-museu, num mau ano agrícola.
Apelando à boa vontade de parte da nobreza e de alguns homens abastados da cidade que possuíam cereal armazenado, o Rei ofereceu-lhes o pagamento de 30 réis o alqueire, um preço relativamente elevado. Contudo, na expectativa de maiores ganhos, quase todos recusaram. Apenas conseguiu a adesão de um único cidadão que colocou as suas reservas à ordem do Rei, dispondo-se a um recebimento de apenas 20 réis. D. João II pagou a 30 e agradeceu. De imediato, negociou com castelhanos a compra de cereal e inundou o mercado eborense. Deste modo, os especuladores que se preparavam para lucros elevadíssimos, à custa das necessidades do povo, ficaram com o trigo em casa e tiveram que vender, no ano seguinte, as reservas a 14 réis.
O cidadão eborense que se pôs à disposição do Rei, de seu nome João Mendes Cicioso, foi o único que lucrou com o negócio. Da sua acção patriótica e de lealdade nunca mais a cidade esqueceu. Ainda hoje, existe uma rua com o seu nome: Rua do Cicioso.
Uma acção de estratégia bolsista, num mercado sem Bolsa. A sagacidade de D. João II.

2005/11/06

José Saramago

E se as pessoas deixassem de morrer? Se um dia, nenhuma morte ocorresse em parte nenhuma? E se o fenómeno se repetisse, dia após dia, mês após mês? É esta a tese do novo livro de José Saramago, INTERMITÊNCIAS DA MORTE. Um título na linha do muito improvável, tema recorrente nas teses do escritor.

Camões



Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.
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Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos não dissesse.
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Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,
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verdades puras são, e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos!
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Luis de Camões

Viva a França!

A França tem sido, ao longo dos séculos, o palco de perturbações e revoluções que, mais tarde, alastram ao resto da Europa e do mundo. A nossa matriz social, cultural e política viu a luz do dia na Revolução Francesa e no Maio de 68. O que se passará, em França, neste preciso momento? Alterações esparsas e sem significado? Ou será o início de mais um doloroso parto? A marca de água da vida europeia virá, um dia, a integrar consequências dos acontecimentos em curso? Creio que sim: este é um processo que culminará com a integração, até agora mal resolvida, da mancha migratória que assolou a Europa.

Migas de espargos

Pode até acontecer que você não goste de migas de espargos. É irrelevante. Se entrar n´A Palmeira, em Cabeção, e correr o risco de provar, vai ficar perplexo, pelo reavivar de velhos sabores da infância. É verdade, mesmo que nunca tenha provado, vai lembrar o travo forte dos sabores que já esqueceu. Em cada um dos ingredientes, uma memória, nenhum deles desempenha, neste manjar, um papel cinzento e descartável, são todos actores principais de uma manjar de deuses. Vá e regue com um dedal de vinho da terra. Prometo-lhe que vai voltar.

Memórias

Há muitos anos. Foi em 1957 que o rapazito entrou no Liceu Nacional de Évora. Levava na pasta todos os medos e anseios que acompanham um qualquer processo iniciático. Foi integrado numa turma terrível. Um dia, o Dr. Gromicho entrou lá e correu tudo à bofetada, só escaparam as meninas. Que grupo! E o rapazito, que nem era bom aluno, fazia ali um figurão: a D. Jozete chamava-o sempre que queria alguma coisa escrita no quadro. Com a D. Celeste, era tudo muito difícil. Ela queria trabalhar e não conseguia, a algazarra só abrandava se entrava o Dr. Miranda, peitaça levantada, queixo à frente do nariz. Era uma figura imponente e que infundia algum respeito. Os rapazes olhavam-no cá de baixo como se olha para um arranha-céus e afundavam-se nas carteiras.
Meu Deus, já nem sabia se tudo se passou nesta ou noutra vida, as imagens saíam-lhe da memória, a preto e branco, como nas fotografias velhas.